Amoroso tropeço

© AMOROSO TROPEÇO

Por Alberto Andrade

Não era a primeira vez que me sentava naquele banco da estação a esperar o metro. Já lá tinha estado tantas vezes, que não saberia dizer ao certo quantas tinham sido. Em resumo, foram muitas e cada uma diferente da outra, isso soube eu perceber muito bem. Também sabia sempre de que lado vinha o metro pela direcção do ar que passava e acariciava os meus sentidos. Os sons da estação estavam já todos identificados pela minha memória auditiva e sensitiva. Se surgisse algum que não conhecesse, punha toda a minha atenção em identificá-lo e registá-lo, o qual para mim é, aliás, vital para me desenvolver com autonomia dentro das minhas limitações, que, ao fim e ao cabo, é o que faz todo ser humano.
Naquele dia aconteceu o que para mim é o mais importante que me tem acontecido na vida, embora, confesso, estava sempre à espera que aquilo acontecesse um dia. Só que no momento, como é normal nas experiências humanas, nunca estamos ao facto das mudanças que a vida nos pode trazer partindo de um acidental tropeço de alguém nos nossos sapatos. Pois, foi então aquele feliz tropeço, e digo feliz, pelo bom que foi para mim, o que trouxe o amor daquela mulher ao meu coração.
Sem querer, acho eu, num desses dias que estava a esperar o metro e que nesta oportunidade era, nem mais nem menos, para começar um curso de informática que ofereciam às pessoas de visão limitada, uma rapariga esbarrou levemente num dos meus sapatos. Ela desculpou-se, e pela voz apercebi-me que era jovem e até a imaginei, além de muito bela, mais ou menos da minha idade. Desculpei-me, e encolhi as pernas em seguida, já que as tinha estendido para continuar a espera numa posição cómoda e descansada. Mas, ao mesmo tempo em que oferecia as desculpas à rapariga, senti uma aceleração gostosa no meu coração, coisa que me recordava àquela sensação que tinha quando ainda era miúdo, ao ver e ouvir aquela menina de caracóis doirados de quem estava namorado. Aquilo aconteceu, e passou, e fiquei a pensar naquele leve encontro até que o som característico do metro a chegar à estação, e o ar a passar a uma maior velocidade pelo meu corpo, indicou-me que era hora de ir ao instituto onde receberia aulas durante os quatro meses seguintes. No metro, continuava a pensar em como é que foi que aquela rapariga não reparou, em primeiro lugar, que tinha pela frente as minhas pernas, embora isso acontece hoje em dia imensas vezes às pessoas por andar tão distraídas ou cheias de stress, e em segundo lugar, na minha bengala que sempre tenho na mão e estendida ao longo do meu corpo, bem seja a um lado ou no meio das pernas. Mas nunca cheguei a suspeitar que o futuro reservava surpresas, e que estavam relacionadas com aquele acontecimento inesperado.
Ao chegar ao instituto, entramos à sala de aulas, e a Formadora começou com a apresentação formal do curso, e logo a seguir a nossa apresentação pessoal. No entanto, a Formadora apresentou também uma colega que a acompanhava naquelas actividades e que estava a se especializar em educação para alunos com necessidades educativas especiais. Não pude ter a certeza imediata de que fosse ela, mas a voz era inconfundível, e o que mais me impressionou, e que fez com que reforçasse a ideia de que era ela mesma, foi que tive aquela deliciosa sensação de namoro. Mas era demasiada coincidência, e poderia ser somente porque a voz delas fossem muito parecidas, e que o que eu tinha sentido neste mesmo instante era ainda consequência do acontecimento do metro, que tinha sido há pouco. Até poderia ser que as vozes nem sequer fossem parecidas, e eu estivesse a querer recrear o encontro mediante a sensação de ter à minha volta algum elemento que coincidisse com o que a minha memória tinha guardado naquele momento em que aconteceu o breve encontro. O que me fez pensar, que aquilo adquiriu uma importância na minha consciência. E o que aconteceria depois o confirmaria.
O facto é que não pude confirmar naquele mesmo dia, se foi ela, ou não, a mulher que tropeçou nos meus sapatos, e que me fez sentir aquele golpe no coração. Tive de esperar até a seguinte aula. Mas ainda antes de chegar à aula, quando estava novamente na estação do metro à espera, ela passou ao pé de mim e fingiu que tropeçava. Digo que fingiu, porque depois soube que ela me tinha reconhecido na primeira aula, após o primeiro encontro, no qual ela também tinha sentido uma emoção especial. Conseguiu reconhecer-me, porque a deficiência visual dela é que é cega do olho esquerdo, mas do lho direito vê muito bem. Só não tinha dito nada porque ela não estava no curso como aluna senão como auxiliar da Formadora do curso, e não pretendia quebrar a regra de ética de relacionamento entre Formadora e Formando.
Pronto, ao parecer, ali, na estação do metro, não teve problema em fingir o acidental encontro. Aquele foi o momento aproveitado por ela para começar uma conversa que partiria por comentar o tropeço sem querer, a primeira aula, e o tropeço, já de propósito, que iniciou o relacionamento que seguiria avante como amizade, mas que, como já contarei, chegaria a namoro. Aproveitei a ocasião para lhe contar que já na primeira aula tinha-me parecido que era ela a mulher que me tinha tropeçado, mas que sem ter a certeza, por aquilo que já disse ao começo, não me atrevi a tentar uma aproximação.
Mas bem, já cá estávamos a iniciar uma amizade muito especial. A partir de aí, foram os convites a comer fora, os passeios, atividades que nos permitiram estar mais tempo juntos e claro está, o inevitável, por ser desejo dos dois, um primeiro beijo, no qual eu hesitei na primeira tentativa, mas que ela se encarregou de confirmar ao dar o primeiro passo apenas se apercebeu da situação. Foi num belo momento durante uma visita ao Oceanario, estávamos abraçados e ela descrevia alguns detalhes que eu não conseguia ver. Enquanto falava, ela olhava para mim, eu sabia quando ela estava a me ver, tanto pela voz, como pelo movimento do corpo que eu sentia pelo contacto que tínhamos, e ainda mais importante, ou cheio de mágica, se quisermos, porque ela abriu, com o seu amor, os olhos do meu coração.
Qualquer pessoa que esteja agora mesmo a ler este relato, ou narração, poderá pensar que aqueles dois seres ainda estão no meio de uma nuvem cor-de-rosa, cheia de encanto e paixão, e por isso, estão a sentir que tudo é mágica à volta deles. Que ao passar o tempo aquilo acabará e eles entrarão na esfera do real, que às vezes parece que por ser tão real, afasta as pessoas da maravilha da vida. Pode ser que tenham razão, se for a sua experiência a que influi neste raciocínio. O que não podem negar, ou deixar de ver, é que eles já viviam desde antes num mundo diferente, pelo qual, isto é uma continuação da sua forma de relacionamento com a realidade que lhes coube viver. Para prova, basta lembrar que foi uma casualidade que fez com que se encontrassem. Embora para quem não acredite em casualidades, está muito claro que eles já se esperavam e não tardaram em se reconhecer um ao outro, logo daquele encontro que lhes abriu os olhos do amor. Talvez não possa dar prova de que foram felizes para sempre, mas o facto é que já eram felizes e o encontro complementou e aumentou a sua felicidade.

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