Traducciones

© As Caçadoras de luz


Autora: Lesbia Quintero

© Traduzido do espanhol por Alberto Andrade



Para Victoria, que me explicou por que é que as borboletas são amarelas.


Numa manhã de começos de Junho, fui trabalhar como era costume, e ao chegar à Avenida Lecuna[1], fiquei de boca aberta, ao ver, igual que o faziam outros, centos de borboletas amarelas a voar no meio daquela loucura urbana; gente a correr, buzinas, fumo preto, e motociclistas a ameaçar com mandar uma cacetada a quem se lhe atravessasse. As borboletas deslizavam-se tranquilas, com o seu voo característico. Naturalmente, não era habitual ver milhares de asas amarelas a fender a rotina de uma avenida contaminada por todo o lado. Escutei que uma mulher dizia a outra, talvez uma desconhecida, que aquilo devia ser uma migração. Um homem rechonchudo afirmou que vinham d’El Ávila[2], «mas El Ávila[3] não fica daquele lado», pensei, enquanto olhava para os lados do Nuevo Circo[4]. Era desde lá de onde vinham as borboletas, mas, na verdade, não tinha ânimo de conversar ou de entrar numa discussão estúpida. Outra senhora exclamou: nada disso! Estão a procurar um lugar mais cálido para pôr as suas crias, ao igual que o fazem os salmões que migram longe para desovar. «Bom, bom», refleti, enquanto aquele espetáculo amarelo continuava a cobrir o céu, «as borboletas não desovam». Uma rapariga maravilhada, dizia à mãe (acho que era sua mãe), que aquilo lhe recordava A Montanha das Borboletas. Entendi que se referia ao romance de Homero Aridjis, e não pude deixar de prestar atenção àquele comentário, quando escutei que a mãe lhe respondeu que, pelo contrário, ela recordava o romance Cem anos de solidão, e que talvez o Mauricio Babilonia estivesse ali por perto. «Ah! “Ou são intelectuais, ou são leitoras», pensei, «não, definitivamente, são leitoras, se fossem intelectuais dariam uma explicação entomológica». Voltei-me para elas para ver se as conhecia, já que na editorial onde eu trabalho passam muitas pessoas diariamente, mas nunca as vi por lá, não reconheci nenhuma.
As pessoas paravam em qualquer lado para ver o voo das borboletas, que pareciam papelitos caídos do céu, ou uma chuva de flores amarelas. Uma senhora assegurou que Oxum estava a sacudir o seu manto de estrelas. «Esta deve ser santeira», especulei mentalmente, sem deixar de olhar para aquele enxame de pétalas amarelas que continuava a sua rota formando aquele majestoso cartaz. Outra mulher disse que aquelas coisas lhe davam medo porque poderia estar a anunciar uma catástrofe, um terremoto por exemplo. Mas uma voz masculina (não reparei em quem falou), respondeu-lhe que aquele acontecimento augurava felicidade. «Oxalá», pensei, enquanto imaginava que o meu raciocínio estava com um pé no território ilógico da lógica, e o outro no mundo ordenado das coisas reais. Entretanto, o campanário da igreja Santa Teresa começou a repicar as suas notas, que também são como pétalas que voam com lentidão e enchem o ar de silhuetas sacudidas por um compasso sinuoso. A voz infantil duma menina obrigou-me a prestar atenção a outro comentário, o melhor que escutei naquele dia. A menina explicava à mãe, que as borboletas eram amarelas porque caçavam a luz do sol para comer. «Que belo», pensei, e dei meia volta para olhar para ela, consegui ver a sua carinha risonha um minuto antes que a mão da mãe a puxasse para a estação do Metro. Vi como se afastavam, a mãe rindo das coisas que dizia a menina, e ela saltitando alegremente com as suas trancinhas balouçando ao compasso dos seus saltos. Aquela explicação ficou-me a dançar na mente como se fosse o voo duma daquelas borboletas.
Dois travestis, exilados provavelmente do bar La crema[5], comentaram com vozes melífluas, inutilmente aflautadas, e duma forma tão esquisita, o facto daquelas borboletas andarem por aquela avenida tão atarantada e cheia de vagabundos.
—Talvez andem como nós, belas e perdidas— disse uma das vozes.
—Eu não estou perdida mana, aqui a única perdida és tu— respondeu a outra.
Riram das suas ocorrências, e atravessaram a avenida a correr, tomados (ou tomadas) pela mão, enquanto faziam caretas para responder aos insultos que lhes lançavam alguns choferes. Dirigiram-se, em seguida, à pracinha da igreja. A cena tirou-me do adormecimento e lembrei o meu horário de trabalho, num escritório entre milhares de escritórios, o trabalho de segundas a sextas, a tão esperada quinzena, as piadas dos colegas e o compromisso daquela tarde. Hoje tenho de ir outra vez a uma reunião de intelectuais. A Gisela é a encarregada de assistir ao clube de escritores, porque é a representante editorial. Ela é uma veterana nessas lides de prometer aquilo que nunca chegará a cumprir, espantar qualquer lirismo intenso, qualquer rima rípio carregada de vinho, qualquer tropo picante daqueles que servem com arrotos e piscadas de olho. Mas ela está de férias e tenho que substituí-la. Antes ia a secretária da Gisela, uma rapariga muito alegre, que se chama Betty, mas os intelectuais zangaram-se porque ela ria quando eles declamavam os seus poemas. Contou-me ela, às gargalhadas, que não só lhe parecia demasiado engraçada a forma em que entoavam cada palavra, senão também a forma (ou mania) de pôr os olhos em branco, o que lhe dava umas ganas de rir incontroláveis, como se as vozes lhe fizessem cócegas. Eu também não gosto dessas sessões onde há muitos fala-barato, mas, antes prefiro isso que ficar em casa vendo o noticiário da noite enquanto espero uma chamada do Miguel, que, aliás, nunca me volverá a chamar.
As borboletas dançam em direção leste, estampando o espaço com as suas asinhas amarelas. Continuo a ver o seu revolutear amarelo por todo o lado enquanto recorro o mesmo trajeto de todos os dias, quer dizer, de segunda a sexta, porque aos sábados e aos domingos prefiro ficar na cama até as dez ou as onze. Caso esteja a chover, então fico deitada todo o tempo que possa, só com breves idas à cozinha em busca de café ou alguma coisa para comer, ou para ir à casa de banho.
As borboletas continuam no seu baile de vento e badaladas, os travestis estão sentados num banco da praça, ao lado de outros que têm umas mamas do caraças. O ar está fresco (a pesar de tudo), choveu durante toda a noite, mas na madrugada começou a estiar, ficou só um orvalho titilante que foi desaparecendo pouco a pouco para que este sol apagado ilumine o dia e as lindas flores do quiosque da praça. Grande Merda! Com um clima assim não apetece nem ir trabalhar. Não gosto nem de me lembrar daquele escritório onde o Sergio e o Rivadeneyra, logo que passa uma meia hora, começam a discutir por qualquer coisa, como se já o tivessem planeado. Às nove e meia da manhã, iniciam uma discussão por qualquer tontaria, que geralmente é uma notícia. Passam o dia a recordar aquilo a cada instante, ou cada vez que têm tempo. E assim, entre formulário e formulário, só se escuta «este livro não, este também não, o orçamento é insuficiente». Voltam sobre o mesmo tema, uma e outra vez, e assim continuam até a hora do almoço. Regressam, com a chávena de café na mão, com variações sobre o tema, sobre o qual nenhum dos dois dá o braço a torcer. Quando está próxima a hora de sair, enquanto vestem os casacos ou arranjam algumas pastas, ou, ainda, enquanto fecham com chave os seus armários, prometem-se continuar com aquilo no dia seguinte, mas isso nunca acontece. Ao dia seguinte, quando o relógio dá as nove e trinta, começam a discutir por algo que no dia anterior nem sequer estava em questão. Sempre me tem parecido que são estratégias para, de alguma forma, suavizar a rotina de formulários, chamadas telefónicas e a permanente luz dos ecrãs dos computadores.
O Sérgio tem dito que gostaria de morrer como um grande ídolo, mas ainda não encontrou o motivo, ou alguém, que lhe produza verdadeiras ganas de morrer, porque o melhor desse tipo de morte é converter-se em notícia sensacionalista, em nota extravagante, que até se possa converter em Efeito Werther. Ele tem confessado, mais duma vez, que gostaria de ver desde o outro mundo, centos de pessoas a se suicidar por ele (caso decida suicidar-se ele primeiro, claro está).
As borboletas formam um mosaico contra as Torres del Silencio[6]. Detenho-me para vê-las mais um bocadinho antes de entrar ao labirinto de corredores, escadas, e elevadores que me levarão até o escritório onde trabalho. As paredes ressecas das Torres parecem um prado de flores amarelas. Ainda é cedo, e posso vadiar durante mais algum tempo, como se estivesse na cama num daqueles sábados ou domingos, mas com a diferença que estava a caminhar e a ver as borboletas amarelas. De repente, lembrei-me que tinha sonhado com moreias, eram verdes e mexiam-se no prato, comecei a ficar histérica e quando veio o empregado de mesa dei-lhe uma chicotada com uma moreia fria e escamosa que continuava a se contorcer na minha mão. Com aquela lógica formidável dos sonhos, a briga entre eu e o empregado de mesa, parecia não importar a ninguém, porque um casal, que estava na mesa do lado, continuava a comer tranquilamente, sem nos dirigir nem sequer um olhar, como se não existíssemos. Noutra mesa, um senhor já velho, com óculos redondos, contava uma história a dois meninos, que, pelo que parecia, eram seus netos. Era um conto demorado, com descrições exatas acerca de uma lâmpada que condenava a quem olhava para a sua luz, deixando-lhos cegos, com a lembrança de imagens conhecidas, e a se afundar para sempre num adormecimento parecido à morte. O velho chamava a cada objeto pelo nome correspondente, e tinha uma dicção admirável. Enquanto o empregado de mesa me dizia que a moreia estava bem cozida, apercebi-me que a metade da sua cara ficou verde, como a moréia. Mas soube, com a certeza que só se tem nos sonhos, que a cor esverdeada era efeito da vergastada que lhe dei com a moreia fria e escamosa.
Quanta maravilha há nos sonhos, nessa dimensão na que não tenho de assumir as minhas carências, na que não posso sequer pensar que quase nunca passa nada. Mas aqui, parada na berma da estrada, antes de entrar pelo buraco que inicia os corredores das Torres, penso que acontece alguma coisa. Sim, por detrás do não acontece nada, está a acontecer alguma coisa, de facto estão a acontecer muitas coisas nisso que chamamos o transcorrer do tempo. Talvez o tempo (nome usado para designar uma abstração, símbolo caprichoso como todos os da sua raça), está ocultando algo, ou, simplesmente, não podemos ver aquilo que não escorre. Talvez ele não se deslize, como dizemos ou pensamos. Talvez seja rígido como uma estátua, talvez sejamos nós que nos deslizamos por uma espécie de escorrega sem nome, que os científicos chamam agora buracos pretos. Acaso a Alice não se deslizou uma vez por um buraco preto? Talvez estejamos a nos deslizar constantemente por essa gelatina até entrar noutra coisa, que também não tem um nome definido.
Uma nova onda de borboletas, que está a passar pela avenida, e ainda mais densa que as anteriores, enche a praça com um fragor suave de asas como pétalas. As pessoas fazem conjeturas acerca dessa migração inesperada, mas em seguida continuam com os seus destinos, esquecem este momento do dia porque há demasiados acontecimentos a cada instante nesta voragem incerta. É tão belo ver isto aqui, onde não há perigo de ficarmos atascados numa latitude pegajosa do tempo. Olhamos por um instante, ficamos maravilhados, a continuação vamos à pressa até o escritório. Lá fora fica todo aquele prodígio, que quebra por um instante a monotonia urbana, mas fica também enfiado na memória, como um postal onírico. Talvez, já na parte da tarde, quando saia do escritório, ainda fiquem algumas nuvens de borboletas amarelas a caçar a luz do sol no ocaso.


Caracas 13 de Junho de 2010, dia das borboletas amarelas.


Nota: texto aderido ao novo Acordo Ortográfico.



[1] Avenida situada no centro da cidade de Caracas, em sentido oeste/este. Itálicas e N. do T.
[2] Serrania, ao norte de Caracas. Itálicas e N. do T.
[3] Idem. Itálicas e N. do T.
[4] É o nome da praça de toros e dá o nome ao lugar. Itálicas e N. do T.
[5] Bar frequentado por gays, e está numa das esquinas da Avenida Lecuna. Itálicas e N. do T.
[6] Prédios gémeos e mais altos no centro de Caracas. Itálicas e N. do T.


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© Macanao

Autora: Ana María Velázquez

© Traduzido do espanhol por Alberto Andrade

Naquela tarde, o som do mar chegou até mim. O vento trazia as vozes dos pescadores que já tinham regressado da sua faina. Eu estava a dormir numa maca na entrada da casa e despertava, de vez em quando, com o barulho das pessoas que saíam para ver o que tinham trazido desta vez os pescadores. O Carlos ia então para ver o resultado da pesca e também para regatear o preço de algum peixe bom para assar à noite nas brasas. Isso era o que ele tinha estado a fazer cada dia durante todo o mês que levávamos de férias naquela casa que os donos alugavam por temporadas a quem vinha da cidade.
Quando regressava com a sua compra, escamava o peixe e colocava-o, já condimentado, no frigorífico, a macerar para o jantar. Depois, saía de casa e sentava-se nos degraus da entrada principal da casa, acendia um cigarro e ficava em silencio durante horas, por vezes, até bem entrada a noite, a contemplar o mar.
As praias da península de Macanao[1] são selvagens, agrestes, bravias. São praias de águas cálidas e de muita brisa, águas que se adormecem ao entardecer e se tornam misteriosas, sombrias, mas que, durante o dia, estão cheias de fortes remoinhos. Naqueles dias, só lá para a tardinha, o mar recuperava a paz que perdia durante o dia, e então, os habitantes do lugar saíam para receber o seu último concerto de ondas antes que a noite chegasse. O Carlos ficava lá fora, ao anoitecer. Enquanto fumava, caminhava pela longa praia e observava o horizonte, absorto nos seus pensamentos, coberto por um nevoeiro de atribulação emocional que se projectava em seu redor. Talvez lhe viessem à memória alguns pensamentos melancólicos. Talvez se lembrasse de quando era criança e das férias que passava nestas mesmas praias. Férias mágicas da infância que um dia ficou para trás, no tempo, e que, ao crescer, lhe ficou para sempre gravado na memória, mas que é inútil querer voltar a viver porque a felicidade simples dos primeiros anos jamais regressa. Jamais!
À entrada da casa, eu observava-o e imaginava quais seriam os pensamentos que nublavam o seu rosto, de que gente, viagem ou circunstancia especial se lembrava nesses momentos em que a sua cara tinha aquela expressão tão triste. Sabia que ele tinha segredos, muitos segredos, que sempre guardou para si para não me ferir, e para não se ferir também ele ao lembrá-los. Coisas tristes da sua infância e da sua juventude, que nunca saíam à superfície por medo de não poder deter a avalancha de lágrimas. Dores de uma vida de adulto cheia de confusões e solidão, de uma maturidade mesquinha e sem horizontes, num país que se desmoronava pedaço a pedaço. Sim! Talvez fossem essas lembranças desagradáveis, as que o mantiveram assim, afastado de mim e silencioso, naquelas férias que deveriam ter sido outra coisa.
Dia após dia, logo que nos levantávamos, cumpríamos a mesma rotina naquela praia sossegada e tranquila, que consistia em caminhar junto ao mar depois do pequeno-almoço. Após o passeio, voltávamos a casa à procura das nossas cadeiras de praia, do guarda-sol e da caixa térmica e saíamos novamente em busca de um bom lugar onde passar o dia com os nossos livros e revistas, tomando banhos de sol e longos e deliciosos banhos de mar.
Ao entardecer, íamos comer a uma pequena barraca de praia, a única que havia naqueles quilómetros de areia branca como talco, que se pegava aos pés e que, depois, era difícil de tirar por ser tão fina. Depois, regressávamos a casa e deitávamo-nos nas macas à entrada da casa, cada um de nós imerso nos seus próprios pensamentos, a ler ou a dormitar. Aqueles foram dias de sol e de descanso, mas também foram os de despedida, ainda que nenhum de nós dois o soubesse naquele preciso momento. Nunca imaginei aquilo que aconteceria depois, nunca vi assomar-se o mal detrás da sombra daquela esbelta palmeira que se reflectia na areia. Alheios ao destino, nós concentrávamo-nos nos nossos pequenos assuntos do dia a dia, nas tarefas simples de uma vida sem complicações, sem preocupar-nos, aliás, muito um pelo outro.
Meses depois, eu continuaria a condenar-me por não me ter apercebido do drama, nem ter pressentido a tragédia que estava por perto, com o seu hálito perverso a respirar junto às cordas das macas. É sempre difícil saber a viravolta que dará o destino, prever aquilo que escapa das nossas mãos, da nossa consciência. Em cada instante da vida, há uma energia que age por si mesma e que é difícil de prever. Uma força ancestral que não podemos deter, nem que o quiséssemos, e que nos conduz, quando menos o esperamos, por caminhos solitários e tristes, que chamamos vulgarmente “a força do destino”.
Nuvens de tormenta, negras e pesadas, assomaram-se um dia pelo poente. Os pescadores ancoraram os seus barcos à beira-mar. Temerosos da bravura das ondas, eles protegeram-nos e amarraram-nos bem com cordas. Como o fazia cada tarde, o Carlos foi à beira-mar à procura de peixe, mas esse dia não encontrou nada: os pescadores tinham regressado mais cedo, pressentindo o temporal pela agitação dos cardumes. A pouca quantidade que tinham podido trazer já a tinham vendido aos revendedores do mercado, não ficava nada para os habitantes da vila, nem sequer para nós.
Isso não o soube senão depois, quando me contaram, como tinha acontecido tudo naquela tarde em que fiquei profundamente adormecida pela ausência de sons, das vozes dos pescadores e das outras pessoas, e pela brisa vespertina que me acariciava o rosto como se fosse a carícia dum fantasma.
Também não me apercebi, naquele momento, que o Carlos nunca regressou a casa, mas que tinha ido com os pescadores à barraquinha onde costumávamos comer. Ele sentou-se ali com os homens do local, a partilhar uns copos de rum, a fazer-lhes perguntas e a ouvir as suas histórias de vida. Jamais imaginei que, a ele, lhe pudesse interessar todas aquelas histórias de amores frustrados, de filhos e mães mortas inesperadamente por falta de medicamentos naquela pobre península cheia de angústia e de miséria. Nunca cheguei a conhecer essa parte da sua personalidade que era sensível à dor daquela gente, que se interessava por compreender como tinham feito, para sobreviver sem recursos, aqueles homens de mar, os pobres homens de Macanao, que se consumiam dia a dia no seu trabalho, sem que nunca houvesse alguma melhoria, nenhuma ajuda do governo, nenhuma mudança.
O que mais lhe chamava a atenção, contaria depois a senhora Florinda, a dona da barraquinha da praia, era a felicidade das pessoas daquele lugar, a sua forma de vida tão simples, o sorriso sempre à mostra, apesar da miséria, sempre que cantavam o galerón[2] e o polo[3] que acompanhavam com o cuatro[4]. As cantigas de regresso do mar, os coros que faziam entre eles quando se dedicavam a preparar as redes e os outros instrumentos de pesca durante as tardes, era o quotidiano naquela praia. Ainda longe, mar adentro, onde eles se confundiam com a imensidade azul da água, também cantavam, diziam eles que, às vezes, era para se chamarem uns aos outros, e que às vezes era para espantar o medo, de alguma sombra imensa que viam passar silenciosamente debaixo das suas embarcações. Cantavam lindamente, como só o sabem fazer os homens livres, com ritmo, com alegria contagiante, com um cuatro e uma bandola[5], com um trago de rum, de aguardente branca ou uma cerveja sempre por perto.
Cantos que se confundiam com o som das ondas, com o sussurro da brisa que trazia vozes longínquas, vozes vindas de outros portos, de outras gentes, de outros pescadores. Cantos que, depois, me acompanharam com tristeza, quando voltei, um ano depois, para depositar no mar um ramo de flores em memória do Carlos, cujo corpo, depois daquela longa tarde com os pescadores e daquela escura noite de tormenta, nunca foi encontrado.
Contaram-me depois que um dos pescadores o tinha tentado deter e o dissuadir de entrar no mar com a tormenta tão forte que houve durante a noite, fazendo com que o mar ficasse mais escuro, mais terrível, mas que ele simplesmente entrou sem olhar para trás. Tinha bebido demasiado.
Enquanto isto acontecia, permanecia em casa, e acabei por despertar com o rosto molhado, com frio nas mãos e nos pés, e apercebi-me de que estava a chover a cântaros. Nunca soube se tinha estado a chorar enquanto dormia, talvez já pressentindo a partida do Carlos, ou se tinha sido o vento de furacão que trouxera gotas que salpicaram a minha face.
Pouco tempo depois dele se fazer ao mar, as águas tormentosas, as ondas bravas, mexidas e perigosas do temporal, engoliram-no. Depois, o mar devolveu a sua camisa branca, e isso foi o único que me trouxeram ao amanhecer, quando vieram avisar-me do que tinha acontecido. A sua camisa branca, molhada e cheia de areia, na mão daquele pescador curtido pelo sol, foi a última mensagem que o Carlos me enviou, provavelmente para que eu soubesse que ele tinha partido para sempre. Notei os olhos ansiosos do pescador por não saber qual podia ser a minha reacção. Cheguei à entrada da casa, pálida e com umas olheiras imensas por não ter pregado olho durante a noite. Revivi a dor do Carlos, aquela a quem fui incapaz de deter, aquela que ele nunca se permitiu mostrar, aquela que foi o terceiro elemento na nossa relação tão esquisita, aquela que, em definitivo, nos afastava um do outro.
Um ano passou, até que regressei para deitar algumas flores ao mar no dia do seu primeiro aniversario de morte. Ao prestar-lhe aquela pequena homenagem, pensava que a sua dor continuava lá, intacta, naquelas extensas costas de mar azul e intenso, onde, em dias de bom clima, podemos ver os cardumes de sardinha brilhando na água, mudando de rumo nervosamente, sempre de um lado para o outro, procurando adaptar-se à instável corrente. Ali estava ela, junto aos barcos dos pescadores, aferrada à areia branca e puríssima, à barraquinha de Florinda, que já era um restaurante com alguma qualidade, agora com um grande letreiro publicitário que ela tinha colocado sobre a porta e uns cântaros de flores em cada um dos lados.
Ao terminar a minha homenagem, ouvi os homens de mar que já entoavam um polo em honra do Carlos, uma canção triste que falava de um enterro em que quatro pescadores de Mariguitar carregavam um morto. Fui convidada a comer sancocho[6] e a beber cerveja.
Foi então que me apercebi de que havia muitas mudanças, de que nada permanecia igual. Novos turistas chegavam com barracas de acampar, cadeiras de praia, guarda-sóis e caixas térmicas para se apropriarem daquela ponta de praia que, antes, quando estivemos lá naquele Verão, estava quase sempre vazia. Sentada na melhor mesa do lugar, saboreava com prazer uma cerveja bem fresca que, naqueles dias, era muito conhecida como “la azul”[7] pela cor da garrafa e ouvi mais alguns cantos que o Serafino, o esposo da Florinda, insistia em dedicar-me. Eram cantos sobre uma terra onde havia sempre flores, chamada Canchunchú Florido, e que é o mítico paraíso que Luis Mariano Rivera, o compositor mais famoso do oriente da Venezuela, criou. Aqueles versos simples e maravilhosos chegavam-me à alma e enchiam-me de ternura fazendo com que eu esquecesse, por instantes, a tragédia que há um ano a esta me lacera a alma.
Lembrei-me então da minha infância, da casa com entrada principal de chão lajeado, que tinha, no pátio interno, grandes fetos pendurados, móveis de madeira escura e altares com muitos santos. Também voltei, através da memória, aos primeiros anos da minha juventude e do meu primeiro amor, ingénuo e puro, e depois, ao meu amor pelo Carlos, o amor que chegou à minha vida depois de muitas decepções, de muito andar na vida sem encontrar sentido algum.
Lembrei-me das flores que ele me trazia sempre, antes que aquela melancolia profunda o levasse a estar tão abatido e deprimido. Lembrei-me do seu cabelo preto sobre a pele alva, agitado ao vento como quando saíamos a navegar, ou de quando a praia se tornava briosa e fria e então tínhamos de entrar à pressa na casinha para preparar uma chávena de cacau que havíamos comprado pelo caminho. Lembrei-me de tudo e voltei a senti-lo perto de mim, a sentir a sua carícia no meu rosto e na minha cintura. Uma carícia que vinha com a brisa da tarde e fazia com que eu o sentisse novamente como outrora. Sentia então que aquela dor tão nossa, que estava presente em todos os cantinhos da praia, se desvanecia.
Voltei, já sem lagrimas, para a cidade, com a alma completamente cheia de carinho, de um verdadeiro carinho daquelas pessoas tão simples que tinham o poder de espantar o medo, a dor e a solidão, com os seus cantos e a sua alegria inocente e pura. Parti em direção a leste e a tarde ficou situada detrás de mim. Uma tarde tranquila, com um céu que parecia uma pintura a óleo, banhada pelo sol dourado e avermelhado e com leves reflexos prateados da sardinha em luta com as mudanças imprevistas da corrente marinha.
Pude sentir então, e pela primeira vez naquele ano, a minha alma ligeira e em mudança, como aqueles cardumes de sardinha, deixando para trás a tristeza, o passado, enfim, a lembrança daquele amor que tinha partido para sempre. Deixei para trás a recordação de Carlos. Mas não as lembranças tristes, como por exemplo, o seu último momento cheio de angústia, ao aperceber-se naquele instante da sua imprudência, ao sentir que aquele mar terrível o engolia. As lembranças que deixei para trás foram aquelas em que ele estava a sorrir na barraquinha da Florinda, a cantar uns galerones[8], a tomar rum com os pescadores e a sorrir para mim desde a mesa do fundo. Talvez quisesse fazer-me lembrar que a vida continua e que a sua caricia na minha cintura, no meu rosto, no meu cabelo, voltaria sempre a mim com a brisa da tarde. A mesma que me despertou com a cara molhada de pranto ou de gotas de chuva, naquela tarde da sua partida, cada vez que me sentisse só.

Paraguachí, Março de 2008


[1] Península situada na Ilha de Margarita, Venezuela. Itálicas e N. do T.
[2] Canto típico na Ilha de Margarita, Venezuela. Itálicas e N. do T.
[3] Idem. Itálicas e N. do T.
[4] Instrumento musical de quatro cordas (de aí o seu nome) usado para acompanhar os cantos folclóricos de algumas regiões da Venezuela. Itálicas e N. do T.
[5] Instrumento musical de cordas usado para acompanhar os cantos folclóricos de algumas regiões da Venezuela. Itálicas e N. do T.
[6] Sopa típica da gastronomia venezuelana. Itálicas e N. do T.
[7] Assim no original. Em português “a azul”. Itálicas e N. do T.
[8] Assim no original. Itálicas e N. do T.

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© O Cruzamento

Autor: César Gedler

© Traduzido do espanhol por Alberto Andrade







Ai Evaristo, estou mesmo a morrer! Os santos já estão irreconhecíveis, estão muito desmerecidos e envelheceram de tanto trabalho que têm feito para aliviar os mais necessitados. Alguns continuam a ser milagreiros mesmo até sem um dos braços, e eu imagino que esses defeitos lhes tira uma parte do poder, como acontece com o meu compadre São Miguel, que ultimamente anda bastante cansado. Aqueles que não sabem nada de nada, podem pensar que ficou couto numa caída acidental. Mas quem sabe do que estou a falar, apercebe-se de que foi uma vingança de algum espírito a quem o meu compadre desfez o trabalho, e que, num instante desses que ele estava provavelmente distraído, o atirou do altar em baixo. Em resultado da pancada, ele perdeu o braço em que tinha a espada empunhada. E o que mais lhe dói, a um bruxo charlatão, é que lhe percam a fé.
Nunca se sabe... Neste mundo não há casualidades. Quando aquele cão ficou atravessado na porta para que eu não pudesse sair, não houve nada que me salvasse do mal na perna com que me deixou; nem sequer a luz que vi, ao lado da janela, advertindo-me de que em lugar de apanhar um pau para o espantar, o devia, isso sim, ter abençoado espargindo-lhe um pouco de água benta. Quando me dei conta já era tarde. Contudo, ainda fui a espargi-lhe a água e o bicho começou a uivar e a dar mais voltas que um desesperado, a ponto de ter dó do pobre animal.
Já estou quase a retirar-me do oficio —pelo menos é o que tenho planeado— porque os anos estão a deixar-me sem vontade para nada, mas cachorro não continua a ladrar à toa, e a esta idade já posso dizer o que quiser sem que ninguém tenha nada a ver. A Honoria quis contrariar-me sobre o tema da sua filha, uma louca que falava como um bêbedo e que deitava a correr por esses outeiros, sem que ninguém a pudesse amarrar. Eu sabia que não era nenhum mal o que ela tinha. Era um espírito atormentador que a tinha possuído por ter nascido do pecado entre irmãos, coisa que tem acontecido com muita frequência nesses montes para lá do Juncal.
O bruxo d’O Cumbito, a quem não quero nomear, fazia com que ela tomasse banho, pela madrugada, no poço que está para baixo d’Os Tiestos, que é a água mais gelada destes lugares. A loca punha-se roxa do frio e com isso acalmava-se um pouco, mas invariavelmente, aos poucos dias voltava a ter o capricho de correr, e aquele bruxo só repetia que o mal estava enterrado, e que, quando ele o encontrasse, curaria a rapariga.
Quem o diria? Os olhos dessa criatura tão bonita e mexida foram revirando, e, depois de ter deitado o primeiro sangue pisado, começou a engordar como uma porca. Quando a trouxeram comigo por ter uma diarreia que estava a deixá-la magrinha, soube que, na verdade, aquelas correrias eram para afugentar o espírito que a atormentava, porque ao iluminá-la com uma vela de sebo, a rapariga só dava sombra do lado esquerdo, e isso fez com que eu suspeitasse o que lhe estava a acontecer. Então, prescrevi-lhe que tomasse, em jejum, a sua primeira urina para que se aquietasse e não andasse á carreira. Mas ganhei a inimizade daquele mau homem, que resultou na queda do meu compadre São Miguel. Além disso, ficou-me este achaque no coto da perna; amputação inevitável causada por aquele assunto do cão.
Evaristo, eu já sei que não me resta muito tempo. Tens-te apresentado já muitas vezes, e que eu saiba, quando visitas os vivos não é só pelo gosto de o fazer. Mas não te dou a razão quando me dizes que perdoe a esse condenado. Prefiro não fazer isso. Eu não sou oportunista, como aquele que pede perdão quando sabe que vai morrer. Acho que não é bom viver sem pecado, porque se uma pessoa se torna em santo nunca poderá descansar na eternidade, já que vai estar certamente obrigado a interceder por todos os que acendam velas e rezem em sua intenção.
Num destes dias, a velha Altagracia apresentou-se cá para me lembrar, toda arrependida, das velhacarias que fizemos quando andávamos por esses mundos, mas eu fazia-me de surdo e não lhe respondia, até que me cansei e disse-lhe: “Vais me dizer agora que não gostaste do que fizemos? Deixa-te de sacanagem Altagracia, eras tu que me convidavas a enganar as pessoas com essas águas coloridas, dizendo-lhes que eram milagrosas, eras tu que lhes tiravas o dinheiro com a mentira de que estava maldito e que tinha de ser queimado. Já estou velho e como uma árvore seca, mas não vou afirmar neste momento que estive enganado toda a vida e que só agora me estou a aperceber do que fiz ou que estou arrependido”.
O meu compadre Dom São Miguel, embora sem o braço com o que empunhava a espada, na última vez que me falou disse-me: “Compadre, quando a morte te entrar pelo buraco chagado que tens no coto da perna, saberás a verdade da vida, e do tempo que perdeste procurando o infortúnio, embora calcule que não vais mudar”.
Hoje, agradeço muito ao meu compadre, porque ele me escolheu para fazer a vida negra ao demónio, e espero que não me deixe abandonado no precipício quando chegar a minha hora, sobretudo quando os senhores da morte estiverem a discutir para onde me vão enviar. O que eu mais gostaria é de morrer enquanto estivesse a sonhar que estaria a tomar uns copos num rinhadeiro e a ver uma briga de galos. Com uma mulherzinha ao lado, que faça o que me apetecer, e ver esse bruxo mal intencionado com o seu galo desfeito pelo meu, e continuar a sonhar que estou num baile, bem da perna e a bailar na corda, quer dizer, com ritmo, como costumava fazer.
Ele disse também, que a gente colhe na morte aquilo que semeou durante a vida. Fico satisfeito com isso, já que, então, o que vou recolher são todas as minhas alegrias da juventude e as minhas manhas de zorro velho, cuja preferida é “a boca a comer e o olho a ver”.
Mas agora estou cada dia pior dos olhos, porque já só vejo nuvens em lugar de rostos. O último que lembro ter visto é o meu nome numa campa. Aquilo fez com que eu desse um salto, tal foi o susto que me pregou. E se é a tua voz, Evaristo, soa como se fosse uma lembrança sem rumo, que desaparece quando a tento ouvir. Medo, medo da morte propriamente, não tenho, já que isso não deve ser pior que uma picada de serpente ou o engano de uma mulher, e ambas as coisas me aconteceram. Se for como encontrar-se com aquilo que não gostamos, então Evaristo, continua a falar e a falar, para que eu não veja o momento da chegada ao cruzamento onde os caminhos desaparecem.


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© Destino Fatal

Autor: César Gedler

© Traduzido do espanhol por Alberto Andrade



Tinha só quinze anos, e na aldeia diziam-me que já tinha o tamanho e a forma de ser de um homem mais velho. Foi então quando lhe dissera ao meu pai, que se não me comprava a bicicleta que me tinha prometido, em troca de estudar bastante e ao mesmo tempo cumprir todos os meus deveres na loja da família, iria para longe em procura do destino, mais longe do que ele mesmo podia imaginar naquele momento. Era o que pensava na altura, e estava decidido a cumpri-lo custasse o que custasse. Aquela bicicleta significava poder namorar a vizinha pela que suspirava em cada instante, e ainda mais quando ela se acercava ao balcão com as suas tranças pelos ombros.
Durante os amanheceres deixava-me levar pelo som dos ventos e o aroma das flores sobre as ladeiras dos montes verde-azulados que rodeavam a aldeia, para além do bosque de pinheiros. Sentado numa imensa pedra, esperava a saída do sol para ver como se dissipavam as sombras que guardavam a noite. Depois regressava para a aldeia com a certeza de que algum dia me perderia naquela serra que tinha o cais do outro lado. Aquele cais ao que chegavam os barcos e a clareza da manhã, do qual partiria para longe, até esquecer como era a porta da casa e a parede de cores escuras da mercearia do meu pai, com telhado de aba muito grande como se fosse um chapéu.     
Queria a bicicleta para levar a Maria sentada na grelha onde pensava pôr a caixa do pão que o meu pai me mandava distribuir todos os dias. Isto tinha de fazê-lo antes de arrumar a fruta e as hortaliças por tamanhos e cores, até armar umas torres que os clientes desfaziam logo a seguir, sem se preocupar pelo trabalho que eu tinha para construí-las outra vez. Além disto, não podia deixar de atender o balcão onde esperava ver a Maria aparecer, com as suas tranças amarelas.
Era um mês de Julho quando entrei na loja com um papel na mão que demonstrava todos os meus conhecimentos com os números e muitas outras coisas que pouca gente sabia naquela ilha. Mas o meu pai já nem sequer se lembrava da sua promessa, o único que fez foi dar-me uns golpes na cabeça, porque pensou que eu andava na brincadeira com os meus amigos, quando já lhe tinha dito que estaria na escola. Ia à escola, não tanto por aprender senão pela bicicleta e para ver a Maria quando ela entrava ou saia da sala de aula.
Não lhe disse nada, apenas esperei até ao dia do meu aniversario, a ver se ele se lembrava da promessa. Mas o que fez foi acender o seu charuto e sentar-se ao lado da porta da loja como sempre o fazia. Comecei a chorar de raiva e saí a exigir o meu premio, mas o que vi foi um carro grande carregado de malas no teto, e lá dentro a Maria com o resto da família, como se fossem embora para não voltar.    
Durante muitas noites, apenas pude pregar olho, e mexia-me muito na cama, sem poder conter as lágrimas que saiam a fio, pelo sofrimento que me deixou a imagem daquele carro a se afastar da aldeia com direção ao cais, com a Maria lá dentro a olhar para mim. Fiquei paralisado frente ao meu pai, sem lhe poder dizer nada, com a mente em branco, a sentir uma dor no peito que não me deixava falar nem respirar. Nem sequer pude comer uma fatia do bolo que a minha mãe me fez para partilhar com os meus amigos naquele dia dos meus anos.
Não passou muito tempo antes que fosse em procura da Maria. Nem sabia que desde aquele cais partiam tantos barcos com rumos tão diferentes. Por isso meti-me no primeiro que tive a oportunidade, sem que o pessoal de bordo advertisse a minha presença, já que me pus a ajudá-los, e ninguém deu por ela. Era o destino a me ajudar.      
Nas costas da Luanda desembarcamos, e por primeira vez tomei cerveja até ficar tendido na berma dum caminho, sem dinheiro e sem amigos, mas com a sorte que o dono da hospedagem me aceitasse como empregado, ao saber que vinha de uma freguesia lá perto de onde ele nasceu.
Uns anos depois, quando já era um homem com dinheiro e habilidade para os negócios, por coisas do destino, encontrei a Maria. Já não tinha as tranças, nem era calada como antes, senão que aceitou a minha companhia, e perguntou-me por que é que estava naquela cidade. Eu contei-lhe passo a passo tudo o que me tinha acontecido desde que vi quando ela se afastava sentada no assento traseiro do carro preto, até o dia em que nos encontramos, e ela confessou que também tinha chorado quando me viu por última vez naquela manhã.
Ao confessar o nosso amor, casamos, tivemos dois filhos, aos que pusemos os nossos nomes. A vida corria muito bem naquele país. Mas os angolanos não estavam contentes com ser colónia portuguesa e saíram às ruas a pedir a sua independência, o qual fez com que acontecessem actos de violência e eu decidisse mudar o destino e voltar para a nossa terra.
Pressentindo que coisas más terríveis pudessem acontecer, levantei todo o meu dinheiro do banco, meti-o numa mala, peguei na Maria e nos meus dois filhos e tentei embarcar rumo à ilha, onde nos esperava a família dela. O pior foi que eram tantas as pessoas que queriam sair do país, que só encontrei três lugares disponíveis, e tive de ficar à espera de outro barco.
Não quis regressar ao centro da cidade, e fiquei num hotel perto do cais, onde ninguém suspeitasse que tinha aquele dinheiro comigo. Embora a minha preocupação só durasse uns dias já que mudaram a moeda nacional e as minhas poupanças ficaram a valer menos que a mala na que estavam guardadas. Procurei alguns amigos, mas os que ainda andavam por lá, estavam na mesma situação. Não tive mais hipótese que trocar a minha roupa por comida, até que o desespero fez-me ir de marinheiro num barco petroleiro que fazia escala na América do Sul, antes de continuar a viajem para os Estados Unidos.
Igual que já me tinha acontecido uns anos antes, quando chegamos ao cais, e fomos a terra para descansar uns dias, fiz amizade com um madeirense que era dono de um bar e fiquei a trabalhar ali mesmo. Depois de aprender o espanhol e conseguir ter o meu armazém de alimentos, continuei a trabalhar com a esperança de mandar vir a Maria e os meus filhos que já estariam bastante crescidos.
Uma vez que já estava bem instalado e com possibilidades, trouxe a família a este país hospitaleiro e de gente muito alegre, que aos fins de semana gastavam tudo o que ganhavam e já na segunda-feira andavam a pedir dinheiro emprestado e fiado na mercearia.
Uns dias antes que chegasse a minha família, um presidente muito popular havia ganhado de novo as eleições, a que celebrou como se fosse um rei africano. O povo muito contente pensava que voltariam aqueles anos em que o único que faziam era viajar a outros países para comprar às dúzias tudo o que gostavam. Mas não passou de um sonho, porque ao mês e meio de estar a governar, o povo fez protestos quando o preço da gasolina aumentou e saqueou uma quantidade de negócios grandes e pequenos sem contemplações.  
O meu negocio não se salvou. Com ferramentas de ferro, deitaram abaixo as portas e levaram tudo. Só deixaram as dívidas, e uma vontade de chorar como aquela vez que a Maria foi embora com a família. Além do prejuízo material, tive de adiar a viagem da família e pedir empréstimos para sobreviver. Era outra vez a fatalidade a complicar a minha vida. Tudo se arranjou e pude trazer a família, embora com muitas dificuldades.
Um tempo depois, chamaram-me para que recebesse uma herança que o meu pai deixou. Mas o que eu pensava que era uma fortuna, não era mais que alguns animais, um bom pedaço de terra e a mercearia em que cresci a trabalhar. Nem a Maria, nem os filhos quiseram voltar para a ilha, embora eu lhes dissesse que era só por algum tempo, e um grande silencio começou a afastar-nos uns dos outros.
E aqui estou de novo, sentado na pedra, a cumprir o meu destino fatal. Saio cada manhã como o fazia quando era miúdo a contemplar o nascer do sol, e a sonhar outra vez que faço uma viagem muito longa, mais longe ainda do que o meu pai pensou alguma vez.

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